Em 29 de dezembro de 2015, a Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul (APERGS) publicou nota em desagravo do procurador Luiz Carlos Kothe Hagemann, que requereu a admissão do Estado do RS como amicus curiae no Recurso Extraordinário n° 888.815, no qual se discute a constitucionalidade da educação domiciliar no Brasil. De acordo com a associação, o procurador teria sofrido “ataques” em razão de sua manifestação e por isso a necessidade de desagravo. Esses “ataques” teriam sido motivados por uma frase específica inserida na manifestação, que atribui à escola a função de proteger as crianças dos pais.
Essa nota é sem dúvida um dos mais pitorescos e surreais documentos já produzidos recentemente pela advocacia pública brasileira. Apenas a sua simples existência já demonstra o quanto certos setores da advocacia pública ainda precisam realizar a lenta e dolorosa transição do corporativismo para o Estado Democrático de Direito.
O instrumento do desagravo é previsto há décadas no ordenamento jurídico brasileiro e tem por objetivo demonstrar publicamente o repúdio de toda a classe advocatícia à ofensa dirigida a um advogado em razão do exercício de suas funções. E essa ofensa, conforme entende a Ordem dos Advogados do Brasil, deve significar a violação de quaisquer prerrogativas dos advogados. Quase sempre, essa violação decorre de uma atuação do Judiciário, do Ministério Público ou do Executivo.
Pois bem. Essa é a primeira nota de surrealidade da nota em análise: absolutamente nenhuma prerrogativa do procurador Hagemann foi violada. Nenhum poder, nenhuma autoridade o constrangeu a fazer agir em desacordo com a lei ou com sua consciência. Em nenhum momento, ele teve sua liberdade profissional cerceada. O que houve, então?
De acordo com a nota, houve um “ataque” ao procurador. Não deixa de ser curioso o uso desse termo. “Ataque”, como todos sabem, significa usualmente agressão física, mas não consta que o procurador tenha sofrido agressão física em razão de seu pronunciamento. Talvez, em abuso da analogia, a associação tenha entendido “ataque” como qualquer espécie de discordância com a manifestação exarada pelo procurador.
E exatamente assim aconteceu. Houve incontáveis manifestações, especialmente nas redes sociais, de discordância do juízo exarado pelo procurador, segundo o qual, ressalte-se, a escola serve para proteger as crianças dos pais. Essa frase merece alguma reflexão. Como se sentem pais de família ao serem declarados um “perigo” para sua crianças? Não seria razoável esperar de muitos deles que expressem sua discordância com essa declaração? De acordo com a associação, parece que a atitude razoável por parte das famílias seria a resignação, a concordância muda, a submissão silenciosa.
Abro um parêntesis aqui: uma categoria social inteira foi difamada, milhões de pais e mães foram equiparados a criminosos ou ao menos a pessoas negligentes ou abusivas, das quais as crianças precisam ser protegidas. De acordo com a associação, não há nada de mais nisso. Por um acaso, isso liberaria os procuradores do Estado do RS para começar a difamar outras categorias sociais, como os negros, as mulheres e os deficientes físicos? Não estaríamos perigosamente próximos do crime de racismo, o qual, segundo o STF, não se refere necessariamente a raça, mas a qualquer grupo social?
A associação está corretíssima ao enunciar que o advogado tem inviolabilidade no exercício de sua função. Porém, estranhamente se esqueceu de mencionar o art. 7°, § 2°, do Estatuto da OAB, que dispõe “O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”. Ora, esse dispositivo é bastante claro ao dispor sobre certas garantias aos advogados, mas em momento nenhum os coloca livres de responsabilização. Como qualquer pessoa, os advogados, públicos e privados, respondem por suas manifestações, sendo apenas diferenciados pelas garantias previstas no dispositivo acima. Como bem sabido, a liberdade de exercer a profissão, qualquer profissão, não livra o profissional de responder pelas consequências desse exercício. Este, porém, não é o ponto central.
Outro ponto surreal na nota é a “lição” que se pretende dar a respeito do exercício do direito constitucional à liberdade de expressão. Após reconhecer o óbvio, que todo cidadão tem esse direito, a associação passa a dissertar sobre supostos limites do exercício desse direito. Somente haveria um legítimo direito à liberdade de expressão com “razoabilidade, urbanidade e boa-fé”. Avulta, em primeiro lugar, uma série de acusações lançadas sem fundamento fático determinado e nem mesmo destinatários concretos (a propósito, essa é a famosa técnica retórica do homem de palha, em que se buscar destruir um adversário fictício).
|Porém, o mais chocante é a pretensão de se buscar limitar a liberdade de expressão a parâmetros vagos e imprecisos, totalmente desconectados do nosso sistema constitucional de liberdades e garantias. Chega a ser constrangedor ter de lembrar a operadores do Direito a literalidade da Constituição Federal, mas vamos lá: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição (…)” (CF, art. 220, caput). Todo estudante de Direito sabe o significado de “não sofrerão nenhuma restrição” e também sabe que eventuais abusos desse direito podem ter como consequência indenização por danos morais. Sem dúvida, os autores da nota sabem disso. E mesmo assim não fizeram referência a nenhuma ocasião concreta em que a honra do procurador tenha sido violada.
Há algo muito perigoso nessa nota. É a sua concepção de que a advocacia pública deve ser um órgão hermético, fechado à sociedade civil, um verdadeiro feudo onde um grupo de senhores tem o poder absoluto de ditar seus termos. Nessa concepção, a liberdade de expressão é absolutamente garantida internamente enquanto que todos os questionamentos da atuação da advocacia pública devem ser os mais discretos, comedidos e prudentes, sempre de acordo com os parâmetros considerados aceitáveis pelo próprio órgão. Se a liberdade de expressão crítica à advocacia deve ser reduzida à insignificância, ao que não incomoda de modo algum, não se pode dizer que nesse campo há real liberdade de expressão.
A advocacia pública brasileira foi estruturada a partir da constituição democrática e pluralista de 1988. Trata-se de relevantíssima instituição que tem a incumbência de defender os interesses do Estado e não de determinado governo, partido ou mesmo algum grupo interno à instituição. Notas como essa demonstram que a advocacia pública, em vários de seus órgãos, ainda precisa internalizar os princípios republicanos de nossa constituição. Resta lembrar o que deveria ser óbvio para todos os advogados públicos: a advocacia pública, como qualquer órgão público, não existe para si, mas para a sociedade brasileira. Ouvir as suas críticas, as suas demandas, as suas reivindicações não é uma concessão, mas um dever derivado do direito constitucional à democracia e à participação popular em todos os órgãos públicos. A democracia, meus caros, não se esgota nem se resume às eleições, mas é vivida a todo o momento, em cada órgão e em cada processo no qual esteja presente o Estado.
Alexandre Moreira
Procurador do Banco Central
Diretor jurídico da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central
Coautor da obra “Advocacia de Estado – Questões Institucionais Para a Construção de Um Estado de Justiça” (orgs. Guedes, Jefferson Carús/ Souza, Luciane Moessa de).
Professor de Direito Administrativo na Escola Superior de Advocacia da OAB-DF.
Procurador do Banco Central
Diretor jurídico da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central
Coautor da obra “Advocacia de Estado – Questões Institucionais Para a Construção de Um Estado de Justiça” (orgs. Guedes, Jefferson Carús/ Souza, Luciane Moessa de).
Professor de Direito Administrativo na Escola Superior de Advocacia da OAB-DF.