Uma questão de saneamento mental básico (1)

Há poucos dias tomei conhecimento da recente entrevista de uma mestre em educação da Unicamp através de um dos grupos de homeschooling de que participo. Como o título interessou-me, “Alfabetização: letra bastão tende a substituir letra de mão”, inclusive pela ausência das clássicas expressões “letra de forma” e “letra cursiva”, resolvi ler a entrevista.
Para minha “surpresa”, já na introdução o carrossel de bobagens começou a girar e não demorou para que ficasse claro que o assunto menos abordado era a questão do tipo de letra a ser adotado ou abadonado nas escolas. 

Inicialmente achei por bem incluir meus comentários logo após alguns trechos da entrevista, os quais havia transcrito abaixo, para deixar a crítica mais clara e evitar objeções do tipo “mas ela não disse isso”, “você não entendeu direito”, etc. No entanto, como a própria entrevista é longa e, portanto, a entrevista comentada seria mais longa ainda, resolvi abordar as questões levantadas pela professora em posts distintos, organizados por temas, caso contrário, o texto integral ficaria muito, muito grande e cansativo. Assim, sugiro a leitura da entrevista (linkada acima) e depois a leitura do meu post.

Alfabetização? 
Fonema e letra vs. palavra e contexto



Não demora a se explicitar, na entrevista, o papagaiar ideológico que faz o coraçãozinho da maioria dos educadores brasileiros bater mais forte: a criança deve “ler” o seu “mundo”, o seu contexto, o seu espaço social, mas numa tal “leitura” a última coisa que importa é o alfabeto. Sim, segundo a professora, o último reconhecimento linguístico que a criança faz no processo de alfabetização é o do alfabeto! E como é que se pode ensinar uma pessoa a ler sem que se ensine o alfabeto? Ora, não se trata de ler coisa alguma de fato, mas apenas de “ler” metaforicamente, criativamente, “construtivamente”, captando “a função social” da palavra no contexto. Ou seja, as palavras devem ser todas unívocas, dotadas de um único significado, o qual é definido pelo… professor! É uma pena que no mundo real a maioria das palavras seja dotada de uma multiplicidade de usos possíveis, mas aí é pedir demais para os “agentes sociais”.

Na prática, trata-se, em miúdos, da substituição do método fônico pelo método ideovisual: enquanto o primeiro, adotado pela esmagadora maioria dos países do mundo, inicia a criança a partir da identificação dos sons de cada uma das letras e, então, vai aumentando de complexidade pela formação das sílabas e, finalmente, das palavras, o segundo parte da identificação visual da palavra inteira. Assim, em lugar de capacitar a criança a ler qualquer palavra, mesmo as que não fazem parte do seu contexto e lhe são desconhecidas, expandindo de fato o seu “mundo”, a proposta de Paulo Freire reduz a criança a um macaquinho de laboratório, capaz somente de identificar aquelas palavras que ela já viu e já conhece. O método ideovisual, sob o pretexto da “função social”, cerceia os horizontes da criança, pois enraíza sua memória sobre aquelas palavras pertencentes ao seu contexto, enquanto o método fônico, perceptível analogamente até mesmo no modo como se elabora o vocabulário infantil (primeiro aprendendo os sons das palavras para depois compreender os seus usos e, por último, a sua grafia) e no modo como surgiu a escrita na história (depois de milênios de tradição oral e, portanto, de amplo desenvolvimento da capacidade memorativa a partir dos sons, surgem as primeiras tentativas de códigos visuais de comunicação), dá verdadeira autonomia à criança.

Por outro lado, os defensores de uma tal inversão metodológica são rápidos em cercarem-se dos mais diferentes recursos retóricos. Expressões como “apreensão do todo”, “integralidade”, “holismo” e até “anti-cartesianismo” são usadas o tempo todo, sem, no entanto, comprovarem coisa alguma, legítimas flatus vocis. Pretende-se simplesmente, por meio de um repertório de palavras que soam agradáveis aos ouvidos new age dos nossos contemporâneos, negar a própria estrutura da realidade: afirmar que uma criança possa ser alfabetizada reconhecendo palavras inteiras, mas não as suas letras e, menos ainda, o som de cada letra, faz tanto sentido quanto a história do Benjamin Button: pura ficção. Querem ver? Transponham a proposta de alfabetização de Paulo Freire para a matemática e mostre uma soma qualquer, algo como 7 + 8 = 15, para a criança e peça para que ela memorize, afinal, 7 + 8 sempre será 15. Tudo certo? Aparentemente, sim. Exceto pelo fato de que a criança não sabe quanto é 7, nem 8 e muito menos 15, sem falar nos sinais de + e de =. Em outras palavras, a menos que a criança aprenda cada item da soma separadamente e em seus diferentes usos, ao ver algo como 8 + 7 = 15 ou 15 = 8 + 7 a criança estará em sérios apuros. 


Ok, sempre há quem implique com exemplos extraídos da matemática. Mas pense, então, em termos de biologia. Que tipo de compreensão se pretende oferecer à criança explicando-lhe a importância e o funcionamento do coração sem que ela saiba sequer a composição de uma célula? Por mais boa vontade que se tenha, uma explicação desse tipo encontrará obstáculos intransponíveis na mente da criança, pois há muita informação pressuposta, informação que é condição de possibilidade da verdadeira compreensão sobre o que é e como funciona o coração. E o mesmo se dá com o aprendizado da língua.

Para encerrar o post, vamos ainda à questão do “contexto” de alfabetização. Por “contexto” a professora se refere àqueles conteúdos que fazem parte do mundo da criança, trazidos de casa, enquanto é tomado como “artificial” (e, portanto, nocivo) tudo aquilo que não compõe imediatamente o universo de origem do aluno, tal como cartilhas, folhas xerocadas e demais recursos materiais típicos de sala de aula. Ou
seja, estipulando o nível ao rés do chão presume-se a pobreza de
vivências infantis e pretende-se a manutenção da mesma condição,
fingindo uma “valorização” do seu ambiente. Ora, os séculos mostram
precisamente o contrário do que defende a professora (em eco ao
“messias” Paulo Freire): quanto mais ricos e amplos forem os recursos,
tanto em termos de materiais, mas especialmente em termos de conteúdos,
maior se tornará a capacidade compreensiva da criança, sua desenvoltura diante dos diferentes estímulos, pois seu mundo
imaginário, que é a base mesma da inteligência, será maior. 

Agora imagine, por exemplo, uma criança filha de pescadores analfabetos e “alfabetizada” de acordo com “o novo paradigma” defendido pela professora e proposto por Paulo Freire: paciência:
vamos mantê-la “contextualizada”, aprendendo as palavras escritas nas
embalagens de anzóis, linhas de nylon e iscas. Não estou defendendo aqui
uma desvalorização da realidade da criança, mas, antes, que não se pode
desejar prendê-la, restringi-la à própria realidade sob ares de
“valorização” do seu repertório pessoal. Isso é falso, mesquinho e
atrofiante. Além disso, é extremamente intrigante que a professora pretenda que
alguma forma de manifestação cultural não seja artificial, como se
livros, cartilhas e cópias fossem produtos da natureza, facilmente encontráveis em hortas,
plantações, árvores e feiras. Mesmo o bilhetinho escrito com um toco de
lápis no verso de um papel de embrulho é artificial, pois é produção
humana, não obra da “mãe natureza”. 



Enfim, nada além de muita retórica a serviço da ideologia mais emburrecedora que já se viu neste país. E seus frutos são abundantes: estupidez, ignorância, desnorteamento e imoralidade.